sábado, 13 de fevereiro de 2010

Abra seus olhos


- Como assim, não é possível? – indaguei.
Estava mais do que histérico com a ideia de voltar. Queria abraçar minha namorada, dar uns pulos, o que fosse, queria reverter a dor da minha partida prematura. Mas estava diante de um pequeno problema.
- Você ouviu direito. – disse-me a voz. – Você pode voltar, mas não ao seu corpo anterior.
- Por que não?! Como vão me reconhecer?
- Não sei jovem. Dê um jeito. Sabe, você está reclamando por nada, nem todos tem a chance de voltar.
- Se voltar já é impossível, achei que ter meu corpo antigo seria a parte mais fácil.
- Não é. Você não quer voltar para ele agora, acredite, a sensação é horrível. Se é que sobrou alguma coisa dele. Seria como assistir “A volta dos mortos vivos”.
Hesito por um momento.
- De onde você tirou todo esse senso de humor? – perguntei.
- Anos de experiência. Você aceita?
- Aceito, sem dúvida.
- Muito bem. Mas vale lembrá-lo de outra coisa.
- O quê?
Dessa vez a voz hesitou.
- O tempo passa diferente aqui e lá. Já se passaram meses desde sua morte, não dias como parece aqui. Não se surpreenda se sua namorada já tenha encontrado outra pessoa, por exemplo.
Pensei por um momento. Não tinha pensado nas coisas dessa forma. Mas deveria estar feliz, afinal, ela teria seguido com a vida. Estaria feliz, e eu deveria estar também.
Lembrei de todas as vezes que estive com ela daqui. É um lugar estranho. Não sinto presença física do meu corpo, não é escuro, mas não é claro, nada é claro. É como se pudesse viajar para qualquer lugar, me sentir lá, mas não necessariamente ver alguma coisa, apenas sentir a presença emocional, nunca material.
Imaginei-me inúmeras vezes com ela. É uma experiência muito forte, como se pudesse senti-la comigo, chorando em meus braços, sem poder fazer nada. Deve ser assim que as pessoas daqui visitam as do outro mundo. Perguntava-me se ela podia sentir minha presença quando eu a visitava, mas nunca soube a resposta.
- Ei – chamei a voz imponente que conversava comigo -, quando eu a abraçava, ela podia me sentir?
- Sim. – respondeu.
Sorri, agora temendo um pouco voltar para minha vida anterior.
- Quanto tempo tenho lá?
- Vai ter o suficiente.
Odeio quando esse cara resolve dar uma de filósofo.
- Estou pronto. – falei.
- Até mais.

**

Abri os olhos e foi como acordar de um sono muito profundo.
Levantei e percebi que estava na beira de uma estrada. Com roupas aparentemente novas, pele um pouquinho mais clara que minha anterior. Passei a mão por meu rosto, tentando definir alguma coisa, sem muito sucesso. Meu cabelo agora era liso e estranho. Não é tão ruim quanto eu esperava. Até ganhei uns músculos a mais nos braços.
Olhei para os lados tentando me localizar, o que não demorou muito. Atrás de mim, a entrada para uma cidade, com a placa verde num suporte alto: “Bem Vindo à Araçatuba”. Sorri, sem saber se meu sorriso era bonito.
Consegui dizer adeus para meus amigos, para meus pais, mas não para ela – e fui mandado diretamente para ela.

Perguntei para algumas pessoas por direções, chegando cada vez mais perto a casa dela. A surpresa foi que minha voz era legal – pelo menos eu gostei de falar com ela. Está aí algo que nunca achei que fosse dizer.
Quando passei pela frente de uma vitrine, não me contive em analisar meu novo visual. Então, percebi a pegadinha. Se aquele cara era Deus, então ele era muito sarcástico. Roupas escuras, pele clara, cabelo liso e preto como a morte... aproximei-me... sombra! Sombra com maquiagem embaixo dos dois olhos!
Sou o perfeito estereótipo de emo.
Nada contra o estilo, o problema é que comecei a me sentir fantasiado. Baguncei meu cabelo o máximo que pude até tirar o aspecto super liso. Entrei no banheiro de um bar para lavar o rosto e em seguida, voltei a meu destino.
Aquelas idéias de que ela já podia ter encontrado outra pessoa voltaram a me atormentar. Algo me dizia no fundo que esse reencontro não seria como eu queria, ou pior, nem seria feliz. Primeiro porque eu teria que explicar a ela meu novo visual dark. Segundo porque talvez seu novo namorado estaria ao lado dela ouvindo a coisa mais sem nexo de sua vida.
Também tem o fato de que posso piorar as coisas.
E se ela já está conseguindo viver bem? E se já está feliz? Minha visita inesperada traria tudo de volta.

Estou parado na frente da casa dela.
Caramba, e agora? Entro, não entro? Arrisco tudo?
Será que isso é um teste? E devo apenas gritar para os céus que não quero mais fazer isso? Ah, tantas perguntas. Avacalho meu novo cabelo com raiva.
Olho para a porta mais uma vez, encostado no muro baixo.
- Algum problema, moço? – uma voz feminina me chama ao lado.
Depois do que não foi muito tempo para mim, ela está ali, linda como sempre. Sorri gentilmente, mas seus olhos parecem tristes, marcados. Espero que seja apenas impressão minha.
- Oi, ah, nada, eu... – tentei me controlar. Não sabia por onde começar. – Eu acho que preciso falar com você.
- Você acha?
- Sim... – suspirei. – Algo muito sério.
Seu rosto mudou, endureceu.
- Ok. Fale.
- Não aqui. Seu pai não vai gostar. – sorri, mas percebi que isso era algo que o Jack diria.
Ela hesitou.
- Eu conheço você? – perguntou-me.
- Não, mas... eu conheço você. – foi o melhor que encontrei para dizer.
- Ok, garoto misterioso. – brincou sem humor. – Tem um lugar que eu gosto bastante daqui. Podemos ir para lá.

Um lugar que ela gosta bastante. Claro, é só pra me deixar ainda mais confuso. Era nosso lugar preferido, um lugar com um banquinho no meio da praça, tranqüilo e pacífico.
Sentamos.
- O que você quer falar? – insistiu.
- Estou aqui para falar do Jack.
Então ela virou o rosto rápido, levando a mão à boca. Comecei a me arrepender disso.
- Ele era meu amigo. – eu disse, inventando na hora. – Mas eu morava em outra cidade, mal nos víamos.
- Como nunca ouvi falar de você? – ela resmungou com a voz quebrada.
- Não nos conhecíamos a tanto tempo. E... – pensei muito bem no que diria a seguir. -... ele queria que eu falasse com você.
Ela virou o rosto para mim, com os olhos cheios de lágrimas.
- Desculpe, isso ainda me machuca bastante. – disse. – O quê, como assim ele queria que você falasse comigo?
- Uma vez conversou comigo sobre certas coisas, sobre a... morte. – quando usei a palavra, ela parece ter levado um susto. – Sobre coisas que queria fazer caso acontecesse. Coisas que queria falar, e de brincadeira, perguntou para mim se eu faria isso por ele, caso nunca conseguisse.
Ela estava petrificada. Minha história parecia ter funcionado bem até agora – por mais que eu odiasse mentir para ela.
Estava tão linda. Queria tanto abraçá-la, beijá-la, apenas uma vez antes de me despedir. Mas não podia.
- Afinal. – disse-me. – O que ele queria que você me falasse?
Pergunta difícil.
- Ele te amava mais do que tudo. Ainda ama, em algum lugar desconhecido. Na verdade, acredito que nesse lugar, ele também sente sua falta, e muito. Quando você estiver sozinha e sentir o abraço dele, é de verdade. Quando escutar um “eu te amo” nos seus sonhos, foi ele mesmo que disse.
Ela estava surpresa e confusa.
- Ele disse para você me falar isso. – não foi uma pergunta.
- Sim... exatamente com essas palavras.
- É que às vezes parece que é ele que está falando. Mas... esquece.
Engoli em seco.
- Eu tinha que vir aqui falar isso para você porque sabia que era importante para ele. – hesitei e mudei de assunto. – Como está indo sua vida?
- Sinceramente... – suspirou, como se fosse confessar algo muito ruim. – Pensei em me matar no começo. Mas passou. Era deprimente demais essa ideia.
- Terrível, nunca mais pense nisso.
- Eu sei. Ele não gostaria disso. – sorriu um pouco.
- Nem um pouco.
- Sabe, onde quer que esteja, queria poder puxá-lo de volta só para dar um último abraço. É o que mais machuca todos os dias, eu não ter me despedido.
- Não se preocupe. Ele sabe disso.
- Será que sabe? – questionou. – Queria tê-lo amado por mais tempo.
- Você ainda o ama, e sempre vai amar.
Sorriu, e em seguida, puxou uma mochila que carregava consigo, abrindo-a. Puxou umas folhas de dentro, que logo reconheci.
- Ele me mandava cartas.
- Eu sei.
- Eu releio muito elas. – entregou-me uma das folhas.
Aquilo era irreal, ver minha própria caligrafia ali, meu coração querendo parar de desespero, minha mente querendo gritar. Mas não podia.
Senti uma sensação engraçada na barriga, algo que sempre sentia ao encontrá-la.
- Às vezes, eu sinto uma sensação engraçada na barriga. – ela disse, sorrindo, com a mão na barriga. – Eu sentia isso quando ele me dizia alguma coisa bonita. E hora ou outra, quando estou sozinha, pensando nele, sinto isso.
Respire.
- Eu tenho que ir. – falei, sem pensar.
- Já?
- Sim, tenho outras coisas pra fazer.
- Muito bem então. Obrigado por ter vindo falar comigo.
- Não foi nada. Adeus.
Virei-me, mas não conseguia andar. Precisava de uma última despedida. A imagem dela ali, no banca, nostálgica, relendo minhas cartas com lágrimas molhando as letras... não devia ser assim. Voltei a me aproximar e abaixei-me perto dela.
- O quê? – perguntou curiosa.
- Tem outra coisa. – respirei fundo, mais fundo do que nunca.
Então a ideia virou realidade. Foi incrível, o quão rápido aconteceu. Lembrei de algo que pensei em fazer há muito tempo, e que sempre sonhava que faria. Do nada, um volume se formou no meu bolso, e tudo parecia se encaixar perfeitamente.
Encontrei as palavras, depois que a adrenalina da ideia baixou.
- Ele ia te entregar isso um dia. – tirei a caixinha do bolso. – É, parece que ele pensava no futuro mesmo. – sorri.
Não consigo descrever o que vi no rosto dela naquele momento. Um brilho intenso. Indescritível.
- Ele ia me pedir em casamento. – mais uma vez, não foi uma pergunta.
- Parece que sim. – falei, percebendo que estava ajoelhado como se realmente estivesse fazendo o pedido.
Ela pegou a caixinha na mão, e levantei.
Dani abraçou-a como se fosse a coisa mais preciosa do mundo.
- Obrigado, obrigado, obrigado, por isso.
- Não foi nada. – na verdade, era.
Quando me distanciei mais um pouco, senti meu corpo se esvaindo. Ainda estava ali, mas era como se estivesse... cedendo. Então ela me chamou outra vez.
- Ei. – sorria. – Eu teria aceitado.
Não me contive em sorrir também, enquanto meu corpo perdia a cor e sumia na frente dela.

9 comentários:

  1. Nossa, que história triste! u.u
    Estilo 'Ps. Eu te Amo'.
    Sabe que eu li TUDINHO? Tava tão emocionante... Pena que o final não foi feliz.

    Coincidentemente, hoje eu vi um filme que trata dum assunto parecido chamado 'E Se Fosse Verdade'. Procure a sinopse e vc vai ver que não estou mentindo.

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  2. adorei 'Ps. eu te amo' *-*

    vou pesquisar esse outro filme aí ;D E obrigado pela visita!

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  3. Caramba, você capricou muito nesse texto. Ficou um show! Embora esteja triste. Tb, seria difícil esperar que ela começasse a namorar um "estranho" só pq dizia que era o namorado dela.

    Boa sorte no BK! Estou seguindo*

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  4. Mas o seu texto ficou muiito legal! Achei que ia levar pro humor, mas surpreendeu no final!
    Vai ser uma torcida mútua então! ;))!

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  5. Nossa Jake adorei o texto.
    Nem sei o que comentar.
    A Daninha merece! =D

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  6. Ai que texto IN-CRÍ-VEL...
    Foi mesmo uma espécie de P.S. Eu te amo, com E se fosse verdade + Ghost...
    Amo muito esse tipo de história.

    Amei o blog!! Beeijos!

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  7. Own! *-*' Amei demais! (:
    Lindo, lindo!

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  8. Parabéns, seu texto ficou realmente muito bom!
    *.*

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